Martin Scorcese - Bob Dylan: No direction home (2005)
Martin Scorcese, um dos meus realizadores preferidos, dirigiu este documentário sobre Bob Dylan. Incide sobre o período que vai de 1961 a 1966 - o mais brilhante. O documentário parte desde os tempos que antecedem os primeiros passos no domínio da
folk tradicional e chega até aos tempos em que está já plenamente instalado no
universo rock. Perante os nossos olhos vai-se desenrolando a evolução de um jovem seduzido por um ídolo marginal (
Woody Guthry), de um género tradicional (
folk) até se tornar, ele mesmo, um ídolo de um género revolucionário (
rock), que seduziu milhões de jovens por todo o mundo. Foi um percurso de contradições e tensões. Gerou polémica. Perdeu públicos e ganhou outros mais. O ponto de viragem foi a
electrização da sua música. Relembre-se o sucesso dos seus primeiros álbuns: acústicos, profundamente marcados pela voz desgarrada e pela harmónica. Configuravam um lugar especial que estava na confluência do
folk com o
rythm & blues. Pois, de forma inesperada, a partir de certo momento, Dylan resolve intercalar esse registo com um outro, que à partida lhe era contíguo, só que transfigurado pela
instrumentalização eléctrica. Mantendo o essencial, resolve incorporar o contributo do
rock & roll. Tal, fazia sentido, em função da sua lógica de rebeldia juvenil, mas assinalava uma irreversível ruptura com o universo baladeiro, assolado pelo espírito da intelectualidade de esquerda que o benzera até então. A perplexidade de Pete Seeger perante uma das primeiras actuações
eléctricas, no
Festival de Newport (patenteada no documentário), ilustra tal reacção. O lastro de ressentimento que deixou em parte do seu público, particularmente aquele que o erigira num ícone político, patenteia-se de modo ainda mais eloquente nas reacções iradas que pontuaram os seus espectáculos na digressão pela Grã-Bretanha. Esses espectáculos aparecem, aliás, intercalados ao longo de todo o documentário. Situados no ponto final do período que abrange, é a partir deles que, em
flashback, se vai percorrendo a sua carreira.
Dylan atinge a plenitude quando desfere a
ruptura eléctrica. Os seus três melhores álbuns serão para sempre
Bringing it all back home (1965),
Higway 61 revisited (1965) e
Blonde on blonde (1966). Neles, nunca chega a haver um abandono de temas acústicos, (muito menos do seu registo vocal e da harmónica!) mas, de forma progressivamente dominante, há a erupção
rock. O mais emblemático é o segundo da tríade. Abre, com
Like a rolling stone, onde está o trecho que Scorcese escolhe para título do documentário - um lema que sintetiza o espírito individualista
dylaninano:
No direction home. Na segunda parte do documentário há uma história sobre
Like a rolling stone. Aí, o músico Alan Kooper, que tinha sido contratado pelo produtor Tom Wilson para as sessões de gravação como pianista, conta como acabou por protagonizar o mais decisivo contributo para a gravação desse tema, ao tomar conta dos teclados do órgão
hammond. Tal ocorreu quando, por inesperada falta do organista, e durante uma temporária saída do produtor, resolveu inopinadamente mudar de teclas, em jeito de brincadeira. No regresso ao estúdio, o produtor interrogou-o, incrédulo, sobre o que fazia ele ali. Foi a expressiva complacência de Dylan que permitiu que a brincadeira continuasse... E pensar no que seria este tema sem aquela quente sonoridade que lhe presta o órgão
hammond... Desde o primeiro acorde é esse o som mais carismático. Na música, como em muitas outras coisas da vida, os grandes achados têm muitas vezes explicações simplórias.
Por fim, quero notar que este documentário, ainda que editado há pouco tempo em
DVD, passou já na televisão, concretamente, na
RTP2, em duas noites consecutivas, no final do passado mês de Agosto.